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Escort Hobby, o modelo que colocou a Ford para disputar o concorrido mercado de veículos populares

Nascido a partir do Escort de 4º geração, o Hobby fez sua estreia com o motor 1,6 litro, mas o modelo ganhou fama com o trem de força de 1 litro

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Por Anderson Nunes


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Soberano no segmento de veículos econômicos desde o seu lançamento (agosto de 1990), o Uno Mille tornou-se um fenômeno de vendas e de marketing da indústria automobilística brasileira. Após a sua apresentação, em apenas quatro meses, a Fiat já havia comercializado mais de 20 mil unidades, fazendo com que o modelo saltasse do quarto para o segundo lugar em vendas. No ano seguinte, 1991, as vendas superaram a marca das 100 mil unidades (45% delas representadas pelo Mille).

Com esse resultado, foi possível colocar o Uno na liderança do ranking de vendas, por quatro meses consecutivos, no primeiro semestre daquele ano, e assim quebrar a hegemonia do Volkswagen Gol. 

Os expressivos resultados da empresa ítalo-mineira foram prontamente identificados pela opinião pública – e pela concorrência, que foi obrigada a se apressar para preparar uma contraofensiva, com o objetivo de participar do chamado “Efeito Mille”. Assim, só quase dois anos depois de o Uno Mille ganhar as ruas com sucesso, o primeiro concorrente chegou para disputar uma fatia desse mercado, era o Chevrolet Chevette Junior. 

Reticentes quanto à ideia de ter no portfólio um modelo dotado de motor de 1 litro, a Autolatina (holding controladora da Ford e Volkswagen), num primeiro momento apresentou estudos internos apontando que a adaptação de um motor de 1.000 cm³ em seus carros era pouco animador. Segundo os dirigentes da Autolatina os testes assinalaram que os protótipos ficaram lentos, menos econômicos e seguros quando comparados aos similares de motor 1.600 cm³. 

Entretanto do outro lado do balcão a Associação Brasileira dos Revendedores Ford (Abradif) não estava nada satisfeita com a postura da Autolatina. Segundo a entidade os produtos da marca do oval azul estavam perdendo competitividade no mercado brasileiro.

Na ocasião o veículo de menor preço da Ford era o Escort L 1,6 litro, que custava 40% a mais que o Uno Mille. Amargando prejuízos mensais depois da chegada do Uno “Mil” e sem apoio da Ford, a Abradif por conta própria resolveu criar um Escort 1000 para demonstrar a viabilidade do projeto. 

TRABALHO INDEPENDENTE

Ainda em 1991, para comprovar as possibilidades de um motor 1000 dentro da gama de produtos da Autolatina, a Abradif recorreu aos conhecimentos técnicos do piloto/preparador gaúcho Clóvis de Moraes, tricampeão brasileiro de kart e de Fórmula Ford.

Para chegar ao motor AE 1000, o preparador Clóvis de Moraes tomou como base um trem de força AE 1.600 e fabricou um virabrequim especial – a partir de um bloco de aço – e fundiu e usinou quatro bielas. O kit de pistões e cilindros eram os mesmos empregados no motor 1.300 que equipavam, opcionalmente, os primeiros Escorts brasileiros. 

Com diâmetro de 71,5 mm e curso de 62,1 mm, foi obtido um motor de 997 cm³, com taxa de compressão de 9:1 (gasolina), com potência máxima de 53,3 cv a 5.500 rpm (78 cv a 5.200 rpm no AE 1,6), e torque máximo de 7,7 m.kgf 4.000 rpm (12,6 m.kgf a 2.200 rpm no AE 1,6). A alimentação era feita por um carburador de corpo duplo semelhante ao original de 1,6 litro, apenas com giclês recalibrados. O ponto de ignição foi fixado em 12 ° graus a 900 rpm. 

A única ressalva durante os testes foi a manutenção do câmbio original do Escort L 1.600, dotado de relações de marchas mais longas, inadequado para um motor de baixa deslocamento volumétrico. Assim mesmo, o Escort 1,0 litro não se saiu mal durantes os testes de rodagem.

A velocidade máxima ficou em 142 km/h contra 164 km/h do irmão 1,6 litro. Já na prova de aceleração de 0 a 100 km/h o Escort de motor “Mil” precisou de longos 20,5 segundos, contra 12,3 segundos do modelo 1,6 litro. No quesito consumo, em uso urbano, de maneira surpreendente, os dois carros tiveram o mesmo rendimento: 11,2 km/l.

Mas isso pode ser explicado pelas relações de marchas do modelo 1000, inadequadas, já que o protótipo utilizava o câmbio completo do modelo 1,6 litro, que tinha relações de marcha mais longas.

Enfim, os resultados obtidos nos testes com o Escort 1000 feitos a pedido da Abradif comprovaram na prática ser bastante viáveis e justificavam toda a pressão que as revendas estavam fazendo sobre a marca. Restava apenas a Ford fazer a otimização das relações de câmbio e também um “regime” para diminuir o peso.

Além disso, a adoção do motor de 1.000 cm³ fazia com que o carro recolhesse apenas 10% de alíquota de IPI. Tal redução fazia com que o preço final do Escort 1,0 litro caísse cerca de 8 a 15% em relação ao Escort L.

BALÃO DE ENSAIO

Embora negasse a viabilidade de ter em sua gama de produtos um veículo 1,0 litro, a Autolatina vinha sim desenvolvendo, um motor de baixa cilindrada e o projeto tinha até nome – Thounsad (mil em inglês). O novo trem força nascia a partir do AE 1,6 litro que, na sua concepção geral, era bastante semelhante ao feito pelo preparador Clóvis de Moraes. Esse motor de “fábrica”, apresentou um desempenho superior, além de melhores índices de consumo.

Isso foi possível graças a uma transmissão com relações de marchas mais adequada a potência e torque do motor. O motor 1,0 litro oficial da Autolatina chegou ao mercado em setembro de 1992, no Gol 1000 e trazia aprimoramentos no cabeçote, comando de válvulas e novas relações de marchas.

Em outubro de 1992 durante o 17º Salão do Automóvel, a Ford apresentava uma nova geração do Escort para o mercado brasileiro (correspondente à quinta no mercado europeu) maior e mais espaçoso. Diferente do que se esperava, não foi naquela ocasião que a Ford lançaria seu modelo de motor 1,0 litro. Batizado de Hobby (nome utilizado em 1978 em uma versão simples do Corcel II), esta nova versão do hatchback mantinha a carroceria antiga e o motor AE 1,6 litro. A diferenciação buscava recolocar o Escort na fatia de mercado dos 1,6 dominado na ocasião pelo Gol CL e Chevette DL.  

O Hobby nada mais era do que o antigo Escort L com algumas alterações visuais que buscavam dar um ar mais jovial ao modelo. Para custar 17% a menos que a versão L da nova geração do Escort, a Ford foi obrigada a simplificar ao máximo o Hobby. Visualmente os para-choques passaram a ser cinza com um filete vermelho percorrendo todo perímetro do carro. A parte inferior da carroceria também recebia a pintura tom cinza. Outros detalhes estéticos eram as lentes dos piscas laranjas, vidros laterais traseiros basculantes e rodas de aço aro 13 sem calotas.

Internamente destacava-se pelo bom acabamento da Ford à época, embora simples o revestimento dos bancos e laterais das portas trazia tecidos de cor clara e colorida. Volante esportivo de dois raios era revestido de material macio ao toque. O painel de instrumentos trazia somente as informações essenciais tais como velocímetro, nível de combustível e temperatura da água, além de algumas luzes-espia. Entre as ausências havia a eliminação do ajuste do encosto do banco passageiro e o acendedor de cigarros. O retrovisor do lado direito era um item opcional. 

A estratégia da Ford com o Hobby 1,6 era simples: ela iria aguardar o comportamento de vendas do Gol 1000 para então liberar ou vetar o Escort Hobby 1000. Assim caso a Ford viesse a optar em equipar o Escort com o motor “Mil”, o modelo já estaria pronto em termos de simplificação de acabamento restando apenas repassar a redução de preço decorrentes da menor alíquota do IPI.

HOBBY 1000

Finalmente, em agosto de 1993 chegava às concessionárias o Escort Hobby equipado com o motor de 1 litro. Já tendo um motor pronto à disposição na prateleira, além de convencida pelo aumento de vendas do Gol 1000, a Ford deixou de lado antigas preocupações, como expor um automóvel tradicionalmente voltado para o luxo e o conforto ao estigma de “carro barato”. 

Equipado com o mesmo motor do Gol 1000, mas em posição transversal, apesar de oferecer apenas 50 cv a 5.800 rpm e torque 7,3 m.kgf a 3.600 rpm, durante os testes ficou comprovado que a motorização de 1 litro casava melhor com o Escort.

O modelo da Ford atingiu velocidade máxima de 139 km/h, contra 133 km/h do Volkswagen. E obteve a média de consumo de 12,2 km/l de gasolina, o que fazia dele até aquele momento o campeão de economia da faixa dos populares. A título de comparação, o Gol atingia 11,8 km/l. Já o tanque de combustível de 64 litros garantia uma autonomia aproximada de 850 km. 

Contribuíram para esse número a nova caixa de transmissão, batizada de MQ, com engates feitos por cabos, tornando as relações de marchas mais suaves e precisas. Com ela a velocidade máxima era alcançada em quinta marcha e nessa condição, o motor estava na rotação de potência máxima, deixando claro o bom casamento das relações de marchas com o torque do motor. A vantagem é dispor do efeito overdrive, ou sobremarcha, o que implica menos ruído a bordo e menor consumo.

Já no visual o Hobby 1000 perdia o nome Escort na tampa traseira. Outros detalhes eram a ausência de frisos e faixas laterais decorativas, além do vidro lateral ser fixo. Em um olhar mais atento, a versão popular não oferecia o retrovisor do lado direito, enquanto no interior perdia a tampa de bagagens, regulagem do encosto do banco do passageiro e forrações laterais do porta-malas e colunas. 

Para a linha 1994, a Ford deixa de oferecer o Hobby 1,6 litro, e concentra-se em melhorias para a linha Hobby 1 litro. Para fugir do despojamento, além de poder enfrentar melhor a concorrência que havia ganho o Chevrolet Corsa e o Gol 1000 II Geração, a Ford cria um pacote de opcionais para deixar o Hobby mais confortável. 

Entre os itens disponíveis estavam o ar-quente, lavador e limpador do vidro traseiro, retrovisor do lado direito, pneus 175/70, rádio toca-fitas, relógio digital no teto e rodas com super calotas. Essa versão também ganhava um filete vermelho nos para-choques e nas laterais de portas. 

Já na eminência do lançamento do Ford Fiesta produzido no Brasil, os últimos Hobby 1,0 deixaram a linha de produção da unidade de Tabão, em abril de 1996. Eles contavam com para-choques na cor do veículo, podendo contar com um filete cinza. Já as rodas ganhavam novas calotas e como opção havia rodas de liga leve aro 14, as mesmas utilizadas nos últimos Veronas, fabricados em 1992.

HOBBY DE COLECIONADOR

Lançado no Brasil em 1983, o Escort foi o primeiro carro mundial da Ford e marcou o surgimento dessa tendência, que buscava o compartilhamento de projetos e componentes para reduzir custos. Durante os 20 anos em que foi produzido, ele trouxe seguidas inovações para o mercado. Hoje os modelos mais cobiçados entre os colecionadores são as versões XR3 e Conversível, entretanto outras versões não tão carismáticas quanto aos irmãos esportivos também começam a despertar atenção, podem até ser uma boa opção para quem pretende se aventurar no mundo do antigomobilismo. 

Nessa reportagem conseguimos reunir dois exemplares da linha Hobby (1,0 e 1,6 litro), modelos de entrada da Ford antes da chegada do Fiesta, sendo que ambos passaram por um processo de restauro. O primeiro modelo trata-se do Hobby 1.6, ano 1994, de propriedade do engenheiro mecânico André Skodowski, 31 anos, de Piraquara (PR). Admirador dos motores de grande cilindrada, o engenheiro mecânico adquiriu o Escort no final de 2016, pois queria um carro confiável, de baixa manutenção e econômico, já que seria o veículo de uso diário de sua esposa. 

O Escort pertencia ao mesmo dono desde 1997, e por muitos anos foi utilizado diariamente sem muito cuidado. Assim que chegou às mãos de Skodowski, o hatchback passou por um processo de revitalização mecânica com a troca de embreagem, rolamentos de rodas, todo sistema de freio (discos, cubos, cilindros de roda, cilindro mestre e pastilhas). O passo seguinte foi dar ao carro a aparência original, de onde foram retirados pequenos pontos de ferrugem, troca de peças quebradas e dar ao interior o padrão de fábrica. 

Ao todo o processo de restauro levou quase dois anos para ser concluído, mas segundo o dono o valeu cada minuto investido. “O que mais marcou nesse veículo é que conheço cada peça, parafuso, detalhe dele, além de poder contar com o apoio da minha esposa e de um amigo”, ressalta. Os pontos fortes do Hobby 1.6 segundo seu dono são a economia de combustível, chega a fazer 10 km/l de álcool no uso urbano, além do excelente espaço.

O nosso segundo Escort é um Hobby 1,0 litro ano 1995, do também engenheiro mecânico Antonio Julio Coupe, 59 anos, de São José dos Campos (SP). Antonio Coupe foi fisgado pelo antigomobilismo em 2015 e hoje possui em sua coleção cinco veículos, entres o Escort Hobby que ilustra a reportagem. 

O modelo foi adquirido em 2018, em uma mesa de bate-papo, quando soube que o proprietário anterior (único dono) comentou que iria vendê-lo, porque as filhas recusavam usá-lo. Escolheu o modelo por gostar de carros da década de 80 e 90.

Parado há cinco anos, o veículo precisou passar um processo manutenção mecânica, banho de tinta, além da revitalização da tapeçaria, pois havia sido atacado por mofo. Foram oito meses de trabalho, para deixar o Hobby no padrão de fábrica, sendo tomado o cuidado de usar peças originais.

Segundo o Coupe, chama a atenção no modelo o conforto, robustez do conjunto mecânico e o silêncio interno. Ponto franco é baixa potência oferecida pelo motor AE (ex-CHT). Apesar do baixo rendimento do motor, Antonio viaja com o modelo para participar de encontros de autos antigos e em um desses eventos precisou socorrer dois amigos participantes. 

“Em um passeio de veículos antigos resolvi ir com o Escort. Durante o trajeto alguns modelos mais potentes passaram por mim e seguiram à frente, até que alguns km a depois, dois estavam parados por falha mecânica e elétrica. Parei e ajudei um deles, desmontando e limpando o carburador do amigo, no meio da viagem. O outro era bobina defeituosa. Ou seja, não existe carro ruim, existe carro mal cuidado”, salienta o engenheiro mecânico. 

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